Denis Lerrer Rosenfield* - O Estado de S.Paulo
Se o Brasil não se cansa de nos surpreender com más
notícias, não é essa a razão de tampouco sublinharmos o que nele acontece de
melhor. Durante anos o Incra foi considerado como uma espécie de patinho feio
da administração federal por posições ideológicas que o afastavam da realidade.
Hoje intervém uma mudança necessária, em que o setor agrário do governo passa a
pautar-se por questões de ordem técnica. Não é pequena a transformação. Ganha o
País e ganhamos todos nós.
O Incra está atualmente assumindo a posição que lhe compete
de órgão incumbido da gestão territorial do País. Não há país moderno e
desenvolvido que careça de tal política. E isso no contexto de sermos, hoje, um
dos maiores produtores de alimentos do mundo, detentores de invejável
biodiversidade. Nesse sentido, acordo para levar a cabo tal projeto já foi
assinado com a Embrapa Gestão Territorial, visando à qualificação da governança
fundiária.
A modernização segue célere o seu curso. Já há 100 milhões
de hectares georrefenciados no País, com uma precisão de 50 centímetros. A base
de dados é totalmente digital, de modo que as inseguranças jurídica e cartorial
características do passado começam a ser, mesmo, coisa do passado. Esse era um
grande nó do setor rural.
Imaginem a segurança de uma transação comercial ou do
direito de propriedade quando os intervenientes não precisarão mais
preocupar-se com a sobreposição de títulos de propriedade - os chamados
"andares" de registros, que continuam a existir nas áreas ainda não
georreferenciadas. Grilagem, por exemplo, também passará a ser equacionada.
Fraudes serão evitadas. O ganho é enorme.
A conquista de autonomia de um produtor rural merece ser
igualmente destacada, pois os seus trâmites burocráticos são sensivelmente
reduzidos. Agora, com o sistema digital estabelecido, esse produtor faz ele
mesmo o seu processo de cadastramento, que é, posteriormente, certificado
eletronicamente pelo Incra.
Terminou o balcão das idas e vindas de documentos, com perda
inestimável de tempo. Sua resposta é online, com eventuais erros sendo
apontados, assim como formas de correção. Havia aqui um calvário administrativo
que começa a ser definitivamente superado. Trata-se de uma medida de
desburocratização.
Para se ter uma idéia da modernização em curso, em apenas 90
dias de 2014 foram certificados mais de 10 milhões de hectares, o que
corresponde a mais que a média anual dos anos anteriores. Doravante tudo será
virtual no Cadastro Rural. A declaração de propriedade será totalmente
digitalizada, via formulários eletrônicos. O proprietário poderá até fazer a
atualização do seu cadastro pela internet. Isso muda completamente a vida do
empreendedor rural.
Do ponto de vista do País, ele passará a contar com um
poderoso instrumento de controle do território, sendo este um elemento
essencial da soberania nacional. Passaremos a saber quem ocupa o território e
qual a dimensão das terras ocupadas, bem como sua função produtiva central, sem
nenhum viés ideológico. Qualquer país avançado tem esse tipo de sistema
nacional de gerenciamento do seu território.
Da mesma maneira, haverá acesso digital a uma base de dados
que nos permitirá ver com precisão as áreas de Floresta Amazônica, pastagens,
áreas protegidas, culturas anuais, culturas permanentes, cidades, rios, lagos,
estradas, florestas plantadas e outras, assim como, mais especificamente,
territórios indígenas, quilombolas e áreas de preservação ambiental. Monta-se,
portanto, todo um sistema de inteligência territorial estratégica.
A reforma agrária ganha também novo enfoque, mais voltado
para a qualificação dos assentamentos. Não se trata apenas de responder à
demanda pela demanda, como se desapropriações e compras de terras resolvessem
os problemas. Não há mágica. Já são sobremaneira conhecidos os assentamentos
que se tornaram favelas rurais, o que chegou a ser reconhecido pela presidente
da República.
A abordagem deve ser outra, o que, por si só, representa um
enorme avanço. Os assentamentos devem ser qualificados em áreas que garantam a
sua sustentabilidade. Assentados deveriam, no imediato, tornar-se agricultores
familiares ou pequenos produtores rurais, emancipados, com seus respectivos
títulos de propriedade. Cidadãos autônomos no pleno domínio de suas
responsabilidades. Não podem ficar indefinidamente tutelados, confinados a uma
política de tipo assistencialista.
Para que esse objetivo possa ser alcançado é da máxima
necessidade que tais assentamentos sejam providos de condições técnicas,
logísticas e creditícias favoráveis, sem o que sua qualificação não poderá ser
atingida. Aos assentados da reforma agrária devem ser fornecidas condições para
que possam gerar renda por si mesmos, consoante com os mecanismos de uma
economia de mercado.
O Brasil precisa ter um olhar de conjunto do seu território.
Se há demandas por terras no sul, isso não significa que elas não possam ser
atendidas em outras partes do País, onde há terras disponíveis. O diálogo tem
de ser estabelecido, sem o qual há o risco de uma mera recaída em disputas
ideológicas, que em nada avançam.
A discussão - que frequentemente vem à tona - relativa ao
número de assentamentos realizados pelo governo Dilma, como sendo inferior ao
do governo anterior, por exemplo, termina desvirtuando a atenção do que é
realmente relevante. A saber: não a mera quantidade, mas, sim, a qualificação
daquilo que está sendo feito.
Tal política acaba incluindo, para que um novo ponto de
partida possa ser estabelecido, a renegociação das dívidas dos assentados, para
poderem eles se colocar na posição de novos agricultores. Isso significa
renegociar as dívidas de 12 mil famílias. Tornam-se, nesse sentido, novos
agentes ativos.
Sem viabilidade econômica não há como os assentamentos
vingarem. Uma gestão moderna do território deve, necessariamente, levar esse
aspecto fundamental em consideração.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS.
Denis Lerrer Rosenfield é um escritor, professor universitário de
filosofia e articulista dos jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e Diário do
Comércio. Tem livros e artigos acadêmicos publicados em português, francês e
espanhol.
E-mail: denisrosenfield@terra.com.br.