O Programa Terra Legal e o caos fundiário na Amazônia
21 de outubro de 2014
Por que o maior programa para reduzir o caos fundiário da
Amazônia – e evitar mortes e desmatamento – só cumpriu 15% do objetivo
Entrega de títulos de terra a agricultores em Porto Velho,
Rondônia. Depois de cinco anos, o programa só regularizou 15% das terras que
planejava legalizar (Foto: Naiara Pontes/MDA)
Uma das maiores tragédias da Amazônia é o caos fundiário na
região. A floresta poderia gerar muita riqueza de forma sustentável, com a
produção de madeira, de essências ou frutos, com turismo ou até com energia e
mineração. Mas nada disso pode ocorrer de forma organizada e controlada quando
não há segurança sobre quem é o dono e responsável pela terra. Um estudo de
2008 do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostrou que
32% das terras na região não tinham propriedade definida.
A confusão fundiária na Amazônia é uma herança histórica.
São quatro séculos de ocupação territorial desordenada. Desde a política de
distribuição das sesmarias do século XIX, a aquisição de terras na Amazônia tem
sido feita por meio de posses. Os ciclos da borracha, a colonização do governo
militar, a corrida do ouro nos anos 1980 e agora a expansão da pecuária
envolveram apropriação irregular de terra pública.
O roubo de terra, batizado de grilagem, começa com a ação de
madeireiras clandestinas. Elas retiram da floresta as árvores de maior valor
comercial. Essa exploração, sozinha, não destrói a floresta, mas deixa a mata
mais pobre. A terra sem dono atrai especuladores, que usam o dinheiro da madeira
e do carvão para derrubar a mata, plantar capim e colocar gado na área
desmatada. A pecuária cria uma aparência de terra produtiva e permite a
falsificação de documentos de posse. Sem propriedade definida, são fadadas ao
fracasso as tentativas de criar um modelo de economia sustentável na Amazônia.
Colocar ordem na floresta não tem sido tarefa fácil. Uma das
esperanças é o programa Terra Legal, lançado em 2009 pelo governo federal.
Quando surgiu, ele estava concentrado em 43 municípios amazônicos. Tinha como
meta inicial entregar títulos de terra a 150 mil posseiros que ocuparam áreas
públicas federais não destinadas a eles. Diferentemente dos grileiros, os
posseiros são pequenos produtores, extrativistas, que usam a terra para
plantar, sem intenção especulativa. O Terra Legal vem sendo executado em fases.
Elas começam com identificação nos cartórios das glebas públicas, seguida pela
medição com satélites (georreferenciamento) das terras, pela identificação dos
ocupantes e pela definição do que fazer com a área. Em consulta a órgãos como a
Funai, o Incra e o Ministério do Meio Ambiente, os agentes do programa
determinam se é possível dar o título a quem lá cultiva ou faz extrativismo.
De um total de 113 milhões de hectares de glebas federais na
Amazônia, há 55 milhões de hectares em situação indefinida. É o equivalente a
Minas Gerais. Eles podem ser destinados a particulares ou a uso público, como
assentamentos de reforma agrária, áreas urbanas, terras indígenas e unidades de
conservação. Qualquer destino desses é melhor que o limbo legal, com a terra
vulnerável à grilagem.
Desde o lançamento do Terra Legal, foram destinados à
regularização 8 milhões de hectares. “Esses títulos beneficiaram 13 mil
famílias na área rural e outros milhares em áreas urbanas, além de garantir
áreas de preservação ambiental e proteção a populações tradicionais”, afirma o
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), executor do programa, em nota a
ÉPOCA. Os resultados ficaram aquém da expectativa. O programa deveria ter
regularizado tudo em cinco anos. Agora, o prazo foi prorrogado para mais cinco.
“O programa avançou na identificação das terras nos cartórios e no mapeamento
por satélite. Mas a titulação ainda é lenta”, diz Brenda Brito, pesquisadora da
Imazon.
Os problemas começam já na identificação das terras públicas
federais nos cartórios. Muitos registros de imóveis rurais são imprecisos.
Outro problema é o número de títulos falsos emitidos na Amazônia. É comum
encontrar dois ou três títulos emitidos para uma mesma terra. Em 2010, o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou o cancelamento de mais de 5 mil
títulos falsos de terras, registrados em cartório, só no Pará.
Enquanto a terra não é regularizada, a indefinição causa
conflitos e estimula o desmatamento. O Pará é o campeão de mortes por conflitos
agrários no Brasil. Foram seis assassinatos em 2013, de um total de 34 casos em
todo o Brasil. Em 2010, 18 mortes no Pará, de 34 no país. Brenda estima que 71%
da área desmatada no Pará até 2011, um total de 175.000 quilômetros quadrados,
estava sem definição fundiária. É o equivalente a quatro vezes o Estado do Rio
de Janeiro. “É difícil pensar em política ambiental sem regularizar essas
áreas”, diz ela.
Entre os Estados da Amazônia Legal, o Pará também vive o
maior caos fundiário. Um estudo do Imazon, de 2012, mostrou que a titularidade
é indefinida em 39% do território, embora haja processos em andamento para
regularização, tanto no âmbito do Terra Legal quanto no programa estadual de
regularização fundiária, do Instituto de Terras do Pará (Iterpa). “O sistema de
controle de terras ainda é deficiente no Brasil. No Pará, a maioria dos títulos
de posse nunca foi legitimada, nem pelo Estado, nem pela União”, diz José Heder
Benatti, da Universidade Federal do Pará.
O mais recente relatório do programa Terra Legal afirma que
43% das glebas públicas no Estado foram mapeadas por satélites. Apenas 4% dos
títulos correspondentes já foram emitidos. Para cumprir sua meta nos próximos
cinco anos, o Terra Legal precisaria emitir nada menos que 68.414 títulos de
propriedade no Pará. O último relatório do Iterpa, referente ao ano de 2013,
mostra que o Pará reuniu 535.826 hectares de terras para regularização
fundiária e emitiu 778 títulos de propriedade, a maioria (663) para pequenos e
médios produtores. “Os resultados dos dois programas são tímidos, pois não há
articulação e cruzamento de dados entre os órgãos fundiários estadual e
federal. Isso contribui para que a grilagem não tenha fim. Ainda mais diante da
especulação imobiliária, gerada pelas grandes obras de infraestrutura”, afirma
Benatti.
O programa precisa correr. A Amazônia vive hoje uma
repetição da década de 1970, quando o incentivo à ocupação com base na migração
e na abertura de grandes estradas estimulou a especulação e a falsificação de
títulos. Na ocasião, o objetivo dos grileiros era usar os papéis falsos para
obter financiamentos bancários do governo federal. “Hoje, isso se repete, com
obras como hidrelétricas e estradas e na expansão da pecuária”, diz Ricardo
Mello, coordenador adjunto do Programa Amazônia da ONG WWF Brasil. O WWF tem
trabalhado com programas de desenvolvimento sustentável de cadeias
extrativistas, justamente em torno dessas áreas de risco, como na área de
influência da BR-364, no Acre, e em torno do Parque Nacional do Juruena, na
divisa entre Amazonas e Mato Grosso. A região poderá receber as barragens da
hidrelétrica de São Simão Alto, na bacia do Rio Tapajós. Se o anúncio das obras
também viesse com a regularização das terras, o impacto seria menor.
Por: Andrea Vialli
Fonte: Revista Época
Nenhum comentário:
Postar um comentário