quarta-feira, 15 de junho de 2011

MÉDICO NA BEIRA DO RIO, SIM SENHOR.

Reportagem do Jornal do Commercio sobre o Projeto Saúde e Alegria.

Médico na beira do rio, sim senhor
Equipe do projeto Saúde e Alegria usa técnicas circenses para conscientizar ribeirinhos sobre cuidados de higiene e saneamento. Em barco-hospital, realiza de consultas a cirurgias
“Saúde, alegria do corpo. Alegria, saúde da alma”, brada o palhaço do Gran Circo Mocorongo, anunciando que hoje tem espetáculo, sim senhor, em alguma das comunidades longínquas da Amazônia. A trupe que salta do barco-hospital Abaré (amigo cuidador, em Tupi) não tem nada de convencional. É formada por médicos, agrônomos, educadores, dentistas e enfermeiros travestidos de artistas circenses. Em terra, eles se juntam aos ribeirinhos para dar um show de criatividade no enfrentamento de problemas clínicos, sanitários e sociais da região.
Através de performances teatrais, contação de histórias, música e dinâmicas de grupo, a população aprende a tomar cuidados básicos. As informações vão da higiene pessoal, saneamento e importância da vacinação ao modo de preparo do soro caseiro e como evitar doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).
O humor é a principal ferramenta de mobilização usada pela equipe do Projeto Saúde e Alegria (PSA), que atua desde 1987 no baixo e médio Amazonas, no Oeste do Pará. Nesse pedaço isolado do Brasil, as longas distâncias e as dificuldades de comunicação fazem com que doenças simples tornem-se graves. “Ver uma criança morrer de um mal incurável é triste, mas vê-la morrer de uma diarreia é inaceitável”, diz o médico Eugênio Scannavino Neto, fundador do PSA.
Navegando contra a corrente das dificuldades, o projeto implantou um sistema itinerante de atenção à saúde adaptado à realidade local. “Construímos um modelo ativo em que o médico vai ao paciente e retorna regularmente a cada 40 dias”, explica o coordenador geral da ONG e irmão de Eugênio, Caetano Scannavino. Segundo ele, em paralelo ao atendimento, as atividades lúdicas cumprem a função preventiva do projeto. Isso inclui a sensibilização para a melhoria da estrutura das comunidades. A começar pelo saneamento. “Promovemos a filtragem e cloração da água, bem como a construção de sistemas de encanamento e distribuição de pedras sanitárias para tapar as fossas”, detalha.
Cerca de 15 mil pessoas em 73 comunidades nas margens do Rio Tapajós são atendidas no Abaré. O barco é equipado para realizar consultas médicas e odontológicas, exames, imunização e até pequenas cirurgias. “Antes, a gente precisava se descolar por um trajeto muito grande e perigoso para se tratar. Agora, as pessoas se sentem amparadas, porque sabem que o Abaré vai passar. A mortalidade infantil diminuiu, e muito”, conta o agente comunitário de saúde e um dos parceiros de primeira hora do PSA, Djalma Moreira Lima, 47 anos, morador de Suruacá, nas proximidades de Santarém.

Impactos
50% foi a redução da mortalidade infantil
96,5% das crianças estão vacinadas, contra 83,3% no Pará.
2% dos menores de dois anos ainda estão desnutridos, contra 5% no PA.
98% das gestantes fazem pré-natal, já a média paraense é de 73%.

A notória melhoria das condições de vida da população ribeirinha levou o Ministério da Saúde a converter a experiência do PSA em política pública inédita. Desde agosto do ano passado, municípios de toda a região amazônica e do Pantanal podem utilizar recursos públicos para implantar Unidades de Saúde da Família Fluviais. E assim o Abaré se tornou em dezembro o primeiro barco-hospital oficial do País, bancado com recursos federais, em parceria com a prefeitura de Santarém. “Agora, ele já opera pelo SUS. Até então, tínhamos que captar recursos para todo o custeio”, diz Caetano.
Com o poder público assumindo a sua responsabilidade, o PSA já planeja para este ano a viabilização de um segundo barco, que percorrerá as comunidades às margens do Rio Arapiuns.

ARTICULAÇÃO
Apesar de estar na origem do PSA, a saúde é apenas uma das etapas do trabalho da ONG. “Percebemos que era preciso inseri-la dentro de um programa maior de desenvolvimento comunitário, que envolve geração de renda, educação, comunicação e organização política”, explica Caetano.
Para cada uma dessas áreas, existem iniciativas específicas. É o caso da Rede Mocoronga (denominação de quem nasce em Santarém), formada por grupos de jovens treinados para atuar como repórteres comunitários. Eles produzem programas de rádio, jornais, vídeos e blogs que divulgam temas de interesse local e possibilitam a troca de informações com o mundo externo.
“Vimos que não dependíamos dos grandes meios para falar dos nossos problemas e dar visibilidade a eles. O mais bacana é poder divulgar a nossa visão das coisas e a nossa cultura”, resume Mônica de Almeida, 22, que não por acaso decidiu fazer faculdade de jornalismo.
A Rede Mocoronga ainda contribui para a difusão das campanhas educativas e para as ações complementares à escola. “Precisamos proporcionar alternativas de formação, porque 47,5% da população é menor de 15 anos e só 7,5% tem acesso ao ensino médio completo”, diz Caetano.
De acordo com ele, outra frente importante de trabalho é a inclusão digital, via implantação de telecentros movidos a energia solar e torres 3G. “Onde há difícil acesso, a tecnologia é mais essencial. Ela permite a notificação de acontecimentos para que o socorro seja providenciado em ambulanchas e viabilizará programas futuros de educação a distância, telemedicina e comércio online.”

DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL
Numa região onde a exploração madeireira e a expansão do agronegócio aumentaram o desmatamento, a grilagem de terra e os conflitos socais, a tecnologia ajuda os ribeirinhos, ainda, a mapear e gerir seu território. “O laboratório de geoprocessamento tem impactado na regularização das terras e no ordenamento fundiário por parte do governo. Esse é um pré-requisito fundamental para saber onde e como se pode investir”, esclarece Caetano.
Isso porque fornecer alternativas de geração de renda para a população ribeirinha também faz parte dos planos do Saúde e Alegria. Nesse campo, as ações são focadas em qualificação de pessoal e construção de infraestrutura receptiva para o ecoturismo, além de apoio à comercialização do artesanato de cestaria típico da região.
Juntando todas as ações, o PSA atua em 150 comunidades, englobando mais de 30 mil pessoas, cobertura que deverá ser ampliada em 2011 para mais 70 comunidades. “Criamos uma série de modelos de ações sociais para o contexto amazônico. Por isso, estamos sendo requisitados para levá-los a outras áreas”, orgulha-se Caetano, com saúde e alegria.

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