A seca em São Paulo a
nossa Amazônia e o desmatamento.
A seca em São Paulo se relaciona com mudança do clima?
-- Pegue o
noticiário: o que está acontecendo na Califórnia, na América Central, em partes
da Colômbia? É mundial. Alguém pode dizer - é mundial, então não tem nada a ver
com a Amazônia. É aí que está a incompreensão em relação à mudança climática:
tem tudo a ver com o que temos feito no planeta, principalmente a destruição de
florestas. A consequência não é só em relação ao CO2 que sai, mas a destruição
de floresta destrói o sistema de condicionamento climático local. E isso, com
as flutuações planetárias da mudança do clima, faz com que não tenhamos nenhuma
almofada.
Almofada?
-- A floresta é um seguro, um sistema de proteção, uma
poupança. Se aparece uma coisa imprevista e você tem algum dinheiro guardado,
você se vira. É o que está acontecendo agora, não sentimos antes os efeitos da
destruição de 500 anos da Mata Atlântica, porque tínhamos a "costa
quente" da Amazônia. A sombra úmida da floresta amazônica não permitia que
sentíssemos os efeitos da destruição das florestas locais.
"A mudança climática já chegou. Não é mais previsão
de modelos científicos, é observação de noticiário"
O sr. fala em tapete tecnológico da Amazônia. O que é?
-- Eu queria mostrar
o que significa aquela floresta. Até eucalipto tem mais valor que floresta
nativa. Se olharmos no microscópio, a floresta é a hiper abundância de seres
vivos e qualquer ser vivo supera toda a tecnologia humana somada. O tapete
tecnológico da Amazônia é essa assembleia fantástica de seres vivos que operam
no nível de átomos e moléculas, regulando o fluxo de substâncias e de energia e
controlando o clima.
O sr. fala em cinco segredos da Amazônia. Quais são?
-- O primeiro é o transporte de umidade continente adentro.
O oceano é a fonte primordial de toda a água. Evapora, o sal fica no oceano, o
vento empurra o vapor que sobe e entra nos continentes. Na América do Sul,
entra 3.000 km na direção dos Andes com umidade total. O segredo? Os gêiseres
da floresta.
Gêiseres da floresta?
-- É uma metáfora. Uma árvore grande da Amazônia, com dez
metros de raio de copa, coloca mais de mil litros de água em um dia, pela
transpiração. Fizemos a conta para a bacia Amazônica toda, que tem 5,5 milhões
de km2: saem desses gêiseres de madeira 20 bilhões de toneladas de água
diárias. O rio Amazonas, o maior rio da Terra, que joga 20% de toda a água doce
nos oceanos, despeja 17 bilhões de toneladas de água por dia. Esse fluxo de
vapor que sai das árvores da floresta é maior que o Amazonas. Esse ar que vai
progredindo para dentro do continente vai recebendo o fluxo de vapor da
transpiração das árvores e se mantém úmido, e, portanto, com capacidade de
fazer chover. Essa é uma característica das florestas.
É o que faz falta em São Paulo?
-- Sim, porque aqui acabamos com a Mata Atlântica, não temos
mais floresta.
Qual o segundo segredo?
-- Chove muito na
Amazônia e o ar é muito limpo, como nos oceanos, onde chove pouco. Como, se as
atmosferas são muito semelhantes? A resposta veio do estudo de aromas e odores
das árvores. Esses odores vão para atmosfera e quando têm radiação solar e vapor
de água, reagem com o oxigênio e precipitam uma poeira finíssima, que atrai o
vapor de água. É um nucleador de nuvens. Quando chove, lava a poeira, mas tem
mais gás e o sistema se mantém.
E o terceiro segredo?
-- A floresta é um ar-condicionado e produz um rio amazônico
de vapor. Essa formação maciça de nuvens abaixa a pressão da região e puxa o ar
que está sobre os oceanos para dentro da floresta. É um cabo de guerra, uma
bomba biótica de umidade, uma correia transportadora. E na Amazônia, as árvores
são antigas e têm raízes que buscam água a mais de 20 metros de profundidade,
no lençol freático. A floresta está ligada a um oceano de água doce embaixo
dela. Quando cai a chuva, a água se infiltra e alimenta esses aquíferos.
Como tudo isso se relaciona à seca de São Paulo?
-- No quarto segredo. Estamos em um quadrilátero da sorte -
uma região que vai de Cuiabá a Buenos Aires no Sul, São Paulo aos Andes e
produz 70% do PIB da América do Sul. Se olharmos o mapa múndi, na mesma
latitude estão o deserto do Atacama, o Kalahari, o deserto da Namíbia e o da
Austrália. Mas aqui, não, essa região era para ser um deserto. E no entanto não
é, é irrigada, tem umidade. De onde vem a chuva? A Amazônia exporta umidade.
Durante vários meses do ano chega por aqui, através de "rios aéreos",
o vapor que é a fonte da chuva desse quadrilátero.
E o quinto segredo?
-- Onde tem floresta
não tem furacão nem tornado. Ela tem um papel de regularização do clima, atenua
os excessos, não deixa que se organizem esses eventos destrutivos. É um seguro.
Qual o impacto do desmatamento então?
-- O desmatamento
leva ao clima inóspito, arrebenta com o sistema de condicionamento climático da
floresta. É o mesmo que ter uma bomba que manda água para um prédio, mas eu a
destruo, aí não tem mais água na minha torneira. É o que estamos fazendo. Ao
desmatar, destruímos os mecanismos que produzem esses benefícios e ficamos
expostos à violência geofísica. O clima inóspito é uma realidade, não é mais
previsão. Tinha que ter parado com o desmatamento há dez anos. E parar agora
não resolve mais.
Como não resolve mais?
-- Parar de desmatar
é fundamental, mas não resolve mais. Temos que conter os danos ao máximo. Parar
de desmatar é para ontem. A única reação adequada neste momento é fazer um
esforço de guerra. A evidência científica diz que a única chance de
recuperarmos o estrago que fizemos é zerar o desmatamento. Mas isso será
insuficiente, temos que replantar florestas, refazer ecossistemas. É a nossa
grande oportunidade.
E se não fizermos isso?
-- Veja pela janela o céu que tem em São Paulo - é de
deserto. A destruição da Mata Atlântica nos deu a ilusão de que estava tudo
bem, e o mesmo com a destruição da Amazônia. Mas isso é até o dia em que se
rompe a capacidade de compensação, e é esse nível que estamos atingindo hoje em
relação aos serviços ambientais. É muito sério, muito grave. Estamos indo
direto para o matadouro.
O que o sr. está dizendo?
-- Agora temos que nos confrontar com o desmatamento
acumulado. Não adianta mais dizer "vamos reduzir a taxa de desmatamento
anual." Temos que fazer frente ao passivo, é ele que determina o clima.
Tem quem diga que parte desses campos de futebol viraram
campos de soja.
-- O clima não dá a
mínima para a soja, para o clima importa a árvore. Soja tem raiz de pouca
profundidade, não tem dossel, tem raiz curta, não é capaz de bombear água. Os
sistemas agrícolas são extremamente dependentes da floresta. Se não chegar
chuva ali, a plantação morre.
O que significa tudo isso? Que vai chover cada vez menos?
-- Significa que todos aqueles serviços ambientais estão
sendo dilapidados. É a mesma coisa que arrebentar turbinas na usina de Itaipu -
aí não tem mais eletricidade. É de clima que estamos falando, da umidade que
vem da Amazônia. É essa a dimensão dos serviços que estamos perdendo. Estamos
perdendo um serviço que era gratuito que trazia conforto, que fornecia água
doce e estabilidade climática. Um estudo feito na Geórgia por uma associação do
agronegócio com ONGs ambientalistas mediu os serviços de florestas privadas
para áreas urbanas. Encontraram um valor de US$ 37 bilhões. É disso que estamos
falando, de uma usina de serviços.
"Sistemas agrícolas são dependentes da floresta.
Se não chove, a plantação não vai para lugar nenhum"
As pessoas em São Paulo estão preocupadas com a seca.
-- Sim, mas quantos
paulistas compraram móveis e construíram casas com madeira da Amazônia e nem
perguntaram sobre a procedência? Não estou responsabilizando os paulistas
porque existe muita inconsciência sobre a questão. Mas o papel da ciência é
trazer o conhecimento. Estamos chegando a um ponto crítico e temos que avisar.
Esse ponto crítico é ficar sem água?
-- Entre outras
coisas. Estamos fazendo a transposição do São Francisco para resolver o problema
de uma área onde não chove há três anos. Mas e se não tiver água em outros
lugares? E se ocorrer de a gente destruir e desmatar de tal forma que a região
que produz 70% do PIB cumpra o seu destino geográfico e vire deserto? Vamos
buscar água no aquífero?
Não é uma opção?
-- No norte de Pequim, os poços estão já a dois quilômetros
de profundidade. Não tem uso indefinido de uma água fóssil, ela tem que ter
algum tipo de recarga. É um estoque, como petróleo. Usa e acaba. Só tem um
lugar que não acaba, o oceano, mas é salgado.
O esforço de guerra é para acabar com o desmatamento?
-- Tinha que ter
acabado ontem, tem que acabar hoje e temos que começar a replantar florestas.
Esse é o esforço de guerra. Temos nas florestas nosso maior aliado. São uma tecnologia
natural que está ao nosso alcance. Não proponho tirar as plantações de soja ou
a criação de gado para plantar floresta, mas fazer o uso inteligente da
paisagem, recompor as Áreas de Proteção Permanente (APPs) e replantar florestas
em grande escala. Não só na Amazônia. Aqui em São Paulo, se tivesse floresta, o
que eu chamo de paquiderme atmosférico...
Como é?
-- É a massa de ar quente que "sentou" no Sudeste
e não deixa entrar nem a frente fria pelo Sul nem os rios voadores da Amazônia.
O que o governo do Estado deveria fazer?
-- Programas massivos de replantio de reflorestas. Já. São
Paulo tem que erradicar totalmente a tolerância com relação a desmatamento.
Segunda coisa: ter um esforço de guerra no replantio de florestas. Não é
replantar eucalipto. Monocultura de eucalipto não tem este papel em relação a
ciclo hidrológico, tem que replantar floresta e acabar com o fogo. Poderia
começar reconstruindo ecossistemas em áreas degradadas para não competir com a
agricultura.
Onde?
-- Nos morros pelados onde tem capim, nos vales, em áreas
íngremes. Em vales onde só tem capim, tem que plantar árvores da Mata
Atlântica. O esforço de guerra para replantar tem que juntar toda a sociedade.
Precisamos reconstruir as florestas, da melhor e mais rápida forma possível.
E o desmatamento legal?
-- Nem pode entrar em cogitação. Uma lei que não levou em
consideração a ciência e prejudica a sociedade, que tira água das torneiras,
precisa ser mudada.
O que achou de Dilma não ter assinado o compromisso de
desmatamento zero em 2030, na reunião da ONU, em Nova York?
-- Um absurdo sem paralelo. A realidade é que estamos indo
para o caos. Já temos carros-pipa na zona metropolitana de São Paulo. Estamos
perdendo bilhões de dólares em valores que foram destruídos. Quem é o
responsável por isso? Um dia, quando a sociedade se der conta, a Justiça vai
receber acusações. Imagine se as grandes áreas urbanas, que ficarem em penúria
hídrica, responsabilizarem os grandes lordes do agronegócio pelo desmatamento
da Amazônia. Espero que não se chegue a essa situação. Mas a realidade é que a
torneira da sua casa está secando.
Quanto a floresta consegue suportar?
-- Temos uma floresta de mais de 50 milhões de anos. Nesse
período é improvável que não tenham acontecido cataclismas, glaciação e
aquecimento, e no entanto a Amazônia e a Mata Atlântica ficaram aí. Quando a
floresta está intacta, tem capacidade de suportar. É a mesma capacidade do
fígado do alcoólatra que, mesmo tomando vários porres, não acontece nada se
está intacto. Mas o desmatamento faz com que a capacidade de resiliência que
tínhamos, com a floresta, fique perdida. Aí vem uma flutuação forte ligado à
mudança climática global e nós ficamos muito expostos, como é o caso do
"paquiderme atmosférico" que sentou no Sudeste. Se tivesse floresta
aqui, não aconteceria, porque a floresta resfria a superfície e evapora
quantidade de água que ajuda a formar chuva.
O esforço terá resultado?
-- Isso não é garantido, porque existem as mudanças
climáticas globais, mas reconstruir ecossistemas é a melhor opção que temos.
Quem sabe a gente desenvolva outra agricultura, mais harmônica, de serviços
agroecossistêmicos. Não tem nenhuma razão para o antagonismo entre agricultura
e conservação ambiental. Ao contrário. A agricultura consciente, que soubesse o
que a comunidade científica sabe, estaria na rua, com cartazes, exigindo do
governo proteção das florestas. E, por iniciativa própria, replantaria a
floresta nas suas propriedades.
Valor Econômico
Fonte: OM - Por Daniela Chiaretti.