A soja mais competitiva do Brasil abre caminhos pelo Norte
na cidade de Itaituba
GUSTAVO BONATO - Reuters
Ao cruzar a baía de Marajó no último dia de abril, o navio
Taurus Ocean carregado de soja escancarou apressado uma nova porteira para a
logística do agronegócio do Brasil, país eficiente nas fazendas e de
infraestrutura ainda sofrível.
As 60 mil toneladas que a embarcação carregava para a
Espanha foram as primeiras escoadas por um corredor ligando as lavouras de Mato
Grosso (maior produtor do Brasil) ao promissor porto de Barcarena, no Pará, por
meio de rodovias e rios até agora pouco explorados.
A rota, que inclui a polêmica e ainda inacabada rodovia
BR-163, além das hidrovias do Tapajós e do Amazonas, deverá tornar-se nos
próximos anos a principal alternativa à exportação de grãos pelos saturados
portos do Sul e do Sudeste do país.
O revolucionário trajeto para a competitividade agrícola do
Brasil, no entanto, ainda apresenta desafios, especialmente neste momento em
que obras ainda precisam ser finalizadas no corredor logístico, que cruza uma
área bastante preservada da Floresta Amazônica, expondo preocupações sociais e
ambientais.
Em um caminhão carregado com 50 toneladas de soja, o
motorista Kleber Silva de Souza começou sua viagem em Sorriso, maior município
produtor de grãos do Brasil, no norte de Mato Grosso.
Três dias, mil quilômetros e muitos atoleiros depois, ele
chegou ao novo terminal da Bunge no distrito de Miritituba, município de
Itaituba (PA), às margens do caudaloso rio Tapajós, onde agora ocorre o
embarque de soja em barcaças com destino a Barcarena, para ganhar depois o
oceano Atlântico.
"Não quero mais voltar. É muito buraco, muita
lama", disse ele à Reuters, ao lado do caminhão, antes de descarregar em
Miritituba. "Subi a última ladeira arrastado por um trator do
Exército."
O trajeto, que vem sendo cada vez mais utilizado nos últimos
meses, é feito basicamente pelo trecho paraense da BR-163, uma rodovia aberta
no meio da selva na década de 1970 e que até hoje não está completamente
asfaltada. As obras começaram efetivamente em 2009 e, após incontáveis atrasos,
o governo federal promete conclui-las no ano que vem.
Até lá, quem rodar pela estrada vai cruzar com quase 200
quilômetros de chão batido. Em se tratando de Amazônia, isso se traduz em lodo
na metade chuvosa do ano e muita poeira no período de seca.
Poucos veículos resistem incólumes.
"Aqui quebra muito caminhão", resumiu o mecânico
Joceclei Assunção da Silva, deitado no barro, debaixo da carroceria de uma
carreta que tentava consertar.
Em Miritituba, grandes empresas --a primeira a operar é a
Bunge-- estão instalando terminais de transbordo, que recebem os grãos dos
caminhões e os despejam em grandes comboios de barcaças.
As embarcações, capazes de transportar 40 mil toneladas ou a
carga de mil carretas, viajam cerca de 80 horas pelo Tapajós e depois pelo
Amazonas até Barcarena, já bem perto do oceano Atlântico.
O terminal da Bunge, similar aos que outras empresas começam
a operar no novo corredor logístico em menos de dois anos, recebe a soja das
barcaças por meio de um sistema de correias, armazena em grandes silos e depois
carrega os navios --como o Taurus Ocean-- que seguem para seus compradores no
exterior, seja na Europa, no Oriente Médio ou na China.
MAIOR RENTABILIDADE
A grande diferença da nova rota que usa a BR-163 e os rios é
a economia, o que explica o uso do trajeto em maior escala mesmo sem a completa
pavimentação da rodovia.
Se um caminhão que carrega soja de Mato Grosso para o porto
de Santos percorre mais de 2 mil quilômetros pelo asfalto, as cargas rumo ao
norte fazem metade do trajeto por hidrovias, elevando a competitividade do
produto exportado e proporcionando um ganho de margem da cadeia produtora até
os exportadores.
O Movimento Pró-Logística, que reúne entidades de
agricultores de Mato Grosso, calcula que o frete entre a lavoura e o navio vai
cair 34 por cento quando o novo corredor logístico estiver operando à plena
carga, em dois ou três anos.
"O produtor gasta mais ou menos 27 por cento de sua
renda com frete. Com a saída pelo norte, vamos conseguir melhorar a
rentabilidade", disse o coordenador do movimento, Edeon Vaz Ferreira.
A economia de frete, incluindo o de transporte de
fertilizantes, pode gerar um corte de custos de 3 reais por saca de soja para
os produtores do norte de Mato Grosso, que estão recebendo atualmente cerca de
53 reais/saca pelo produto.
Tomando-se como exemplo um agricultor de médio porte que
plante mil hectares de soja naquela região, a nova logística pode representar
150 mil reais a mais de ganhos em cada safra. "Isso permite a ele ampliar
o negócio", disse Vaz Ferreira.
OBRAS QUE SE PAGAM
Aproveitar o que o Brasil tem de melhor em termos de
logística, seus rios, é um sonho antigo das empresas do agronegócio.
A primeira a se aventurar no eixo do Tapajós foi a
norte-americana Cargill [CARG.UL], que em 2003 instalou um terminal para navios
em Santarém (PA), exatamente na ponta final da BR-163, atenta à promessa do
governo federal de concluir rapidamente o asfaltamento da rodovia.
A ideia era receber os grãos de caminhão e já embarcá-los em
navios transatlânticos, que alcançam o porto subindo o gigantesco Amazonas por
centenas de quilômetros.
A obra do terminal foi concluída, enquanto a pavimentação da
rodovia se perdeu em burocracias e autorizações ambientais.
A solução da Cargill foi receber, desde então, a soja por
barcaças originadas em Porto Velho (RO), numa rota que só é viável para escoar
a produção do noroeste de Mato Grosso, excluindo o norte, que concentra a maior
parte da produção do Estado.
"(A construção do terminal) foi otimista porque
apostou-se num cronograma de 163 que não se confirmou, mas acertou-se naquilo
que era o complementar (as barcaças)", disse à Reuters o diretor de portos
da Cargill, Clythio Buggenhout, oficial da reserva com 25 anos de serviço na
Marinha do Brasil e um entusiasta da logística fluvial pelo Norte do país.
Nos últimos anos, a Cargill revisou os planos e decidiu
também apostar na integração entre rio e asfalto, assim como a Bunge. Está
duplicando a capacidade do terminal de Santarém para 5 milhões de toneladas de
grãos por ano e iniciando ainda em meados deste ano a construção de um terminal
para despachar barcaças em Miritituba. Investirá 160 milhões de dólares nas
obras.
O terreno da Cargill em Miritituba foi comprado em 2011 e
hoje não há mais terrenos disponíveis à margem do rio com viabilidade técnica
para a instalação de terminais --cinco empresas de agronegócio e outras três de
cargas gerais já garantiram as melhores áreas.
Outras cinco companhias, que chegaram depois, pretendem se
instalar num distrito mais remoto, chamado Santarenzinho, segundo apuração da
Reuters.
A Cargill e a Hidrovias do Brasil devem começar obras em
Miritituba este ano, que ficarão prontas para operar na safra 2015/16,
juntando-se ao projeto de 700 milhões de reais da Bunge, que escoa soja pela
região desde o primeiro trimestre de 2014.
Um estudo da consultoria Macrologística estima que os
investimentos privados em oito terminais de transbordo na região de Itaituba,
mais oito terminais marítimos em Barcarena e outras cidades, além das barcaças
necessárias para operar no trecho, vão demandar 6,8 bilhões de reais.
Apesar de serem projetos genuinamente privados, todos os
terminais contam com a obra pública de asfaltamento da BR-163 para se tornarem
completamente viáveis.
O trajeto entre Mato Grosso e Itaituba/Miritituba ainda tem
180 quilômetros sem asfalto. Cerca de 120 devem ficar prontos até o fim de 2014
e os 60 restantes, em 2015.
O custo para finalizar a rodovia e os investimentos
necessários na preparação e sinalização dos rios, além da dragagens e
adequações do porto em Barcarena, foram estimados em 3,8 bilhões de reais,
segundo a Macrologística.
Esse investimento público geraria redução de custo no
transporte capaz de injetar 2,2 bilhões de reais por ano na economia da região.
O projeto se paga, portanto, em menos de dois anos.
"As eficiências que este projeto cria serão boas para
todos", disse o presidente global da Bunge, Soren Schroder, a poucos
metros da margem da baia de Marajó, horas antes da inauguração do novo terminal
da empresa em Barcarena, no fim de abril.
Outra vantagem da saída de navios pela região da foz do rio
Amazonas é a distância menor até os compradores internacionais, na comparação
com Santos, principal saída dos produtos brasileiros. Por exemplo, o trajeto
até Roterdã, na Holanda, cai de 10 mil para 7,7 mil quilômetros.
"Com essa diminuição de custo, o Brasil fica
imbatível", disse o diretor da Macrologística, Renato Pavan.
PRODUÇÃO CRESCENTE DE GRÃOS
Ter mais opções de escoamento é essencial para um país que
em uma década elevou sua produção de soja e milho em quase 63 por cento, para
161 milhões de toneladas, e mais do que duplicou suas exportações, para quase
83 milhões de toneladas na última temporada, embora tenha mantido praticamente
inalterada sua capacidade instalada nos portos.
Entre os grandes motores do avanço recente na produção de
grãos estiveram a melhoria da produtividade, a expansão de área em regiões como
Mato Grosso e o incremento da chamada "safrinha" de milho, plantada
logo depois da soja e que movimenta o setor no segundo semestre do ano.
Mato Grosso, que é um dos que mais sofre com o frete caro
entre lavoura e porto, deve ser o principal usuário dos novos corredores pelo
norte. O Estado exportou 28 milhões de toneladas de soja e milho em 2013 e, nos
cálculos da consultoria Agroconsult, deve enviar para o exterior 51,8 milhões
de toneladas dentro de dez anos, com o aumento da demanda internacional,
principalmente pela China.
"Preponderantemente, o volume adicional de produção que
vem nos próximos anos vai ser destinado às novas saídas logísticas pelo
norte", disse o diretor da Agroconsult, André Pessôa.
As opções rumo ao norte incluirão os terminais de Barcarena,
também conhecidos por Vila do Conde (nome do porto público da cidade), e de
Santarém, além de Santana (AP), Itacoatiara (AM) e São Luís (MA) --esses dois
últimos já operando.
Segundo a Agroconsult, os terminais do norte responderão por
quase 40 por cento do escoamento de grãos de Mato Grosso em uma década, contra
15 por cento no ano passado. Os terminais de Barcarena passarão de zero em 2013
para 5,8 milhões de toneladas de grãos embarcadas em 2023, liderando o ranking
entre os portos do norte.
DESENVOLVIMENTO
Com tanta riqueza passando, o grande desafio dos lugares que
recebem os novos empreendimentos logísticos é capturar parte desse
desenvolvimento e gerar crescimento ordenado, duradouro e sustentável.
Itaituba, um município com um século e meio de história onde
urubus e cachorros magros ainda reviram o lixo no centro da cidade, é um grande
exemplo do longo caminho que ainda precisa ser percorrido.
Nas últimas décadas do século passado, a cidade inchou com o
dinheiro dos garimpos no rio Tapajós. Foi uma riqueza que trouxe moradores sem
interesse em fixar raízes, não gerou investimentos e, por seu caráter muitas
vezes ilegal, proporcionou pouca arrecadação para os cofres públicos.
Agora, há os empreendimentos logísticos batendo às portas da
cidade. Com eles, virão também fluxo de caminhões, postos de combustíveis,
oficinas, restaurantes e toda a sorte de pequenos negócios.
"Nós temos dificuldade de atender à população que está
chegando", disse Eliene Nunes (PSD), primeira mulher eleita prefeita de
Itaituba, que recebeu a Reuters num final de tarde de domingo agitado na
cidade, após ter participado de três compromissos oficiais.
Segundo a Fundação Bunge, que vai investir 10 milhões de
reais em educação, saúde e proteção a crianças nas localidades que recebem os
empreendimentos logísticos da empresa no Pará, apenas 9 por cento dos moradores
de Itaituba têm empregos formais.
A população do município, que hoje está em 130 mil pessoas,
pode chegar a 200 mil em oito a dez anos, segundo a prefeitura. Na conta, está
um enorme volume de trabalhadores e novos moradores esperados com a construção
de uma série de hidrelétricas planejadas para a região, três delas no Tapajós
-- Itaituba é a principal cidade na região dos empreendimentos.
"Queremos evitar o que foi errado em Altamira. Não
foram estimuladas outras formas da economia além da construção da
barragem", disse a prefeita, referindo-se à cidade paraense que recebe as
obras da usina Belo Monte, que agravaram problemas como criminalidade, trânsito
e infraestrutura local.
Cada terminal de transbordo que se instalar em Itaituba, com
capacidade média de receber 3 milhões de toneladas de grãos, vai gerar o
trânsito de 75 mil carretas na cidade a cada ano.
Quem já percebeu o movimento de caminhões aumentar foi o
agricultor João Costa Sobrinho, de 65 anos, 28 deles morando à beira da BR-163,
sempre sonhando com o desenvolvimento da região. "Tem tudo para melhorar.
O que precisamos urgentemente é melhorar o ensino", disse.
O desafio social se conjuga com ambiental. Se o asfaltamento
da rodovia viabiliza empreendimentos de logística, também atrai uma maior
ocupação das terras e, invariavelmente, algum grau de desmatamento.
A facilidade de escoamento, seja de grãos, de gado ou de
madeira, tende a pressionar a floresta, dizem especialistas.
A ocupação de parte do bioma amazônico por fazendas já é uma
realidade na ponta norte da BR-163. Prova disso é o preço das terras para grãos
na região dos municípios de Santarém e Belterra, que saltou 713 por cento nos
últimos cinco anos, contra 107 por cento de valorização na média nacional,
segundo dados da consultoria Informa Economics FNP.
Visando evitar a ocupação desordenada, ambientalistas
defendem a maior presença do poder público na região. Nos mais de 1.200
quilômetros entre o norte de Mato Grosso e Santarém, passado por Itaituba, não
há nenhum posto da Polícia Rodoviária Federal, por exemplo.
"Sem a governança, a estrada asfaltada na Amazônia vira
um caminho de ilícitos", disse o coordenador de Infraestrutura Inteligente
da ONG The Nature Conservancy, Gustavo Pinheiro, defendendo que o trecho
paraense da BR-163 seja concedido à iniciativa privada antes que o asfaltamento
seja concluído.
Ele defende que os contratos prevejam a instalação de
balanças, postos de controle e bases policiais, com o objetivo de inibir o
comércio ilegal de madeira e o tráfico de drogas.
Quem sabe, assim, o novo trajeto em prol da competitividade
do agronegócio do Brasil possa ajudar a região a trilhar um percurso social
menos tortuoso e difícil que a construção da nascente nova rota da soja.
Fonte: Estadão/ Economia e Negócios